sábado, 3 de janeiro de 2009

Cronicazinha de início de ano

Esquerdo ou Direito?
Alfredo Attié Jr
O gajo desperta, na manhã de ano novo, vai logo se espreguiçando, bocejando e... ainda estremunhado, hesita, ao tentar levantar, sobre o primeiro pé a fazer tocar no soalho. Muita gente lhe “desejara”, na noite anterior, entre a insistente música axé, samba, pagode, começar o ano com o “pé direito”. Era, enfim, uma tradição e representava algo como bom agouro. Mas por que carga d’água deveria ele, um esquerdista convicto, pisar com o pé da direita, um lado conservador, retrógrado, contra os avanços sociais, contra o lado do povo, vanguardeiro, progressista? “Começar com o pé esquerdo” – pensou, provocador. Mas a hesitação veio do temor de agir contra uma velha tradição e se estrepar o ano inteirinho... quem riria por último, a contestação ou a reação? A mulher já se irritava com o vai-e-vem do marido, flagrado com as pernas pro ar, como que atacado por alguma artrite matinal. “Não falei que não era pra misturar bebida, querer experimentar de tudo? E ficar achando que dança, se engraçando pr’aquelas ‘ar de não sei fazer nada”, ‘mão macia’, pernas de ‘nasci anteontem’”? O marido não tinha explicação para a pose, nem o álcool, ainda transitando na cabeça, o raciocínio enevoado, a preguiça do argumento, uma certa ressaca permitiam qualquer motor dialético. Ficou só irritado, pela interrupção da busca da solução. Não era supersticioso, mas não custava tentar acertar uma ajudinha do imponderável. Esqueceu a mulher, que começou a ficar preocupada. O marido, de certo, enlouquecera. Tanta bebida, afinal, ano após ano, tinha de fazer efeito em algum momento. Tinha sentido um arzinho de estupidez, na performance do marido, no réveillon, um atraso inédito nas reações, risadas fora de hora, expressões deslocadas, frases truncadas. Estava perdido o sujeito. E o trabalhão que iria dar-lhe na velhice, mais que chegada. Gritou: “Credo, que tá havendo, homem de Deus? Vai ou não vai?” Foi. Pisou com os dois pés, tentando se levantar e se firmar no chão, mas foi um tombo só. Não tivera coragem de enfrentar o dito popular, nem de trair conscientemente o lado do coração. A mulher, desesperada, se ergueu, deu a volta na cama e se deparou horrorizada com o fulano estatelado, um sorriso idiota no rosto, mortinho da silva, dono do azar mais sórdido que pode haver. A idade não perdoara os abusos da festa. Não começou nada. Terminou a vida num instante inconcluso. Esquerda, direita... dúvida besta, pô! Custou-lhe uma vida. Custou muitas vidas.

Um comentário:

  1. salve alfredo - que para mim soa esquisito (rss..) melhor mesmo é chamá-lo de attié. a curiosidade, dizem, matiu o gato. a minha, por ora, ainda não me custou a vida. apenas me trouxe até aqui. para este teu cantinho virtual. e esquerda e direita são mesmo uns troços um tanto quanto perigosos. da próxima vez, melhor não restar dúvidas. entre a superstição e a razão, sempre, meu caro, a superstição. razão, pra quê? no mais das vezes, ela pouco ou quase nada nos tem valia, a não ser para obstruir alguns de nossos instintos mais humanos, belos e necessários, que sobrevivem apesar dela. ótimo 2009 pra vc e para os teus roberta, francisco e tomas.
    marcos pardim

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