quinta-feira, 8 de janeiro de 2009

Complexo de Dumas



Os leitores de Alexandre Dumas devem lembrar com prazer das aventuras dos três mosqueteiros e de como se desdobravam para garantir a imagem de Luís XIII contra as torpezas de Richelieu, um dos personagens mais odiáveis dos romances de todos os tempos. Um por todos e todos por um, bradavam os fiéis guardiães do interesse da monarquia, mesmo que fosse apenas o de recuperar uma jóia das mãos do amante inglês da rainha, para que o cardeal não a viesse colocar em maus lençóis (tirando-lhe as boas lembranças de outros) perante o puro e simples monarca. Haveria os maus e os bons e a política seria frágil para estabelecer o lugar de cada um, dar aos últimos a vitória e, aos primeiros, a lição merecida. É exigido um roteiro por trás da cena política e para isso nada melhor do que hábeis aventureiros, dispostos a depositar sua fortuna por uma boa briga e uma causa duvidosa do ponto de vista moral, mas correta do ponto de vista da honra, que tem as próprias regras e hierarquia. Para ela, o lugar do rei é intangível e, assim, como no jogo de xadrez, pouco importam as boas ou más intenções de seus lances, as demais peças devem fazer tudo para protegê-lo. Para os leitores dos livros de história, as coisas mudam de figura. Luís XIII seria tão-só o nome de certo estilo decorativo, enquanto que o vilão da estória de Dumas teria, em contrapartida, lugar assegurado no panteão dos grandes realizadores e construtores da grandeza francesa. Aqui não caberia ou seria ridícula a indagação da maldade ou bondade dos personagens, pois o julgamento está direcionado às ações políticas - em sentido amplo - e a seu resultado, numa época em que lances decisivos foram jogados para a construção da idéia de Estado e para a fixação da noção de política que, se não é ainda praticada em sua plenitude, serve aos julgamentos que fazemos de tais ações. Aqui também a honra aparece e determina muitas regras, mas, ao contrário do tabuleiro idealizado do xadrez romanesco, as peças têm o valor que o próprio jogo lhes dá, a sua hierarquia se constrói durante a partida. Como dizia Cervantes, nem sempre a direção compete a quem toma assento à cabeceira da mesa. Bondade, honestidade e suas antípodas contam pouco no tribunal da eficácia política e menos ainda, hoje em dia, quando o gesto da modelo ou o gosto da apresentadora moldam todas as opiniões. Não quero dizer com isso que a verdade esteja na história e que a invenção do romancista configure mera fábula, deleitada enquanto durar a idade da inocência. Pelo contrário, proponho que a imaginação do romance vale mais do que a pretensiosa lição da história. Mesmo diante do palco da política que ajudamos a construir - modestamente, com nosso votinho de quando em vez -, permanecemos presas do modelo do romance, que chamo de complexo de Dumas. Elegemos governantes para que governem, tomem as decisões que - se não desejamos, em nossa posição ainda muito passiva e pacífica na história política brasileira - prometeram tomar. Assim pensamos no momento da batalha da eleição: tal candidato é melhor, pode decidir melhor, pode me representar melhor, é a melhor opção. Mas, terminada a eleição, pomo-nos estranhamente do lado oposto da política e passamos a enxergar o governante como um usurpador, um acidente, que cedo ou tarde deve revelar seus caprichos e arruinar-nos a todos. Nossa postura é de vigias de sua moralidade e não de fiscais de suas ações de governo. Olhamos a política como se lêssemos um romance, assistíssemos a uma novela. Não torcemos para que isso ou aquilo dê certo, mas queremos saber se fulana é fiel e se beltrano está ou não correto em sua fofoca de sicrano. Obcecados pelas paixões - que não são nossas, mas dos personagens que assumem os papéis de nossa novela política -, deixamos de estar atentos às ações e não mais as controlamos, colaborando para que se concretizem - ou, o mais das vezes, apenas torcendo para que se realizem, ou jogando diretamente contra a sua realização, criticando seus princípios e seus fins. Nossas paixões, da ordem de uma moral falsa, por não corresponder ao que vemos no dia-a-dia, fazem paralisar as ações de governo e parecemo-nos comprazer nisso. Esquecemos que elegemos pessoas para o exercício da política e não para assumirem uma caricatura moral. Parece ser o triste destino de nossa política preservar a imagem imaculada de um palácio imaginado e impedir o desenvolvimento de um programa de poder. Paralisamos todo e cada governo. Está aí aos analistas da Nação a proposta de estudo de uma nova figura antiterapêutica: o complexo de Dumas.
Alfredo Attié Jr é doutor em filosofia da USP e juiz de direito

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